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“Com exceção do sono, os humanos passam a maior parte de suas vidas trabalhando do que em qualquer outra atividade.” (Erik Gomez-Baggethun, 2022).
Por Junior Garcia
O trabalho ocupa, historicamente, uma posição central em nossa vida, não apenas como fonte de renda monetária, mas na sociedade contemporânea também como definidor da identidade e função social. Com a recente Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para reduzir a jornada de trabalho no Brasil, é oportuno refletir sobre o papel que o trabalho desempenha em nossas vidas e o que a redução na jornada de trabalho poderia significar para a sociedade.
Ao longo dos séculos, a concepção do trabalho passou por mudanças radicais. Para as sociedades antigas e tribos nômades, o trabalho era uma necessidade de subsistência, algo a ser feito com moderação para prover as necessidades básicas, mas não o suficiente para preencher todo o tempo da vida. Em algumas sociedades, o trabalho era destinado aos escravos ou inimigos derrotados que escolheram a vida em vez da liberdade. Por muito tempo o trabalho foi visto com desprezo, um fardo humano. Isso contrasta fortemente com a visão moderna, em que o trabalho remunerado se tornou sinônimo de valor pessoal e produtividade, uma percepção consolidada pela Revolução Industrial e posteriormente exacerbada pelo capitalismo moderno.
Este foco excessivo e positivo no trabalho remunerado resultou, em muitos casos, no esgotamento físico e mental de indivíduos e na subvalorização de atividades essenciais, porém não remuneradas, como o cuidado doméstico individual e coletivo. As pesquisas antropológicas sugerem que, em sociedades pré-industriais, as pessoas dedicavam menos horas a tarefas produtivas, o que permitia um ritmo de vida mais relaxado e mais tempo para lazer e convívio social. Estas informações oferecem uma perspectiva interessante sobre como o volume de trabalho, atualmente, talvez tenha ultrapassado o limite da necessidade humana básica e entrado no campo do exagero.
A proposta de redução da jornada de trabalho deve ser vista não apenas como uma política trabalhista, mas como uma possibilidade de avanço na direção de uma sociedade mais sustentável e justa. O avanço tecnológico e a automação oferecem uma oportunidade única na história para redefinir e redistribuir o trabalho de forma que todos possam atender às necessidades de subsistência sem comprometer as condições para a vida. No entanto, ao invés de diminuir a carga de trabalho, a tecnologia frequentemente tem sido utilizada para intensificar o ritmo de produção e prolongar a jornada de trabalho. O aumento da digitalização e a introdução do “trabalho sombra ou invisível” — tarefas não remuneradas que agora executamos, como reservas online e autoatendimento — aumentam a carga invisível de trabalho que muitos de nós suportamos diariamente, como ler e responder e-mails e mensagens de texto e reuniões virtuais em horários de descanso, além da necessidade de contínuo aperfeiçoamento educacional e profissional realizado fora da jornada de trabalho. Estamos plenamente envolvidos em atividades relacionadas ao trabalho.
Para além das barreiras econômicas, a forte centralidade do trabalho na cultura ocidental é sustentada por normas culturais que veem o emprego formal como a principal fonte de realização pessoal e status social. Essa visão perpetua uma “ética do trabalho” que, em vez de liberar o trabalhador, o prende a uma busca incessante por produtividade e acumulação. Como observou o filósofo André Gorz, as conquistas tecnológicas poderiam, em tese, permitir uma drástica redução da jornada de trabalho, mas a ideia de que o valor humano está intrinsecamente ligado à ocupação impede que essa possibilidade seja plenamente explorada.
Ao repensar o papel do trabalho no século XXI, talvez devêssemos nos inspirar na ideia de uma “Economia do Suficiente”. Em vez de perseguir um crescimento (econômico) infinito, seria possível focar em uma sociedade que privilegie mais a qualidade de vida e o equilíbrio ou aquilo que vale a pena viver a vida. Isso implicaria uma redistribuição justa não apenas de recursos – redução das desigualdades sociais, mas também do tempo de trabalho, reconhecendo que as atividades de cuidado individual e coletivo, reprodução social e sustento das vidas, muitas vezes não remuneradas e a carga das mulheres e crianças, são igualmente valiosas para uma sociedade mais sustentável e justa.
Reduzir a jornada de trabalho não é, portanto, apenas uma questão de proporcionar mais tempo livre para as pessoas, mas criar uma estrutura social em que todas as pessoas possam ter acesso ao necessário para viver com dignidade. Uma jornada reduzida e distribuída de forma equitativa também traria benefícios ambientais, ao reduzir a necessidade de consumo excessivo, e sociais, ao diminuir o estresse e aumentar a possibilidade de engajamento em atividades comunitárias e de autodesenvolvimento.
A proposta de redução da jornada de trabalho no Brasil, portanto, pode ser o começo de uma transformação fundamental na maneira como pensamos o trabalho e seu papel em nossas vidas. Afinal, o trabalho deveria nos servir, e não o contrário. É hora de resgatar o que significa uma vida bem vivida e promover um futuro em que o tempo de trabalho esteja alinhado não com os interesses de produção e do crescimento econômico (leia-se PIB), mas com os princípios de justiça socioambiental.
Junior Garcia – Professor do Departamento de Economia e Coordenador do Grupo de Estudos em MacroEconomia Ecológica (GEMAECO) da Universidade Federal do Paraná.
Notas
¹ O artigo foi inspirado no trabalho de Erik Gomez-Baggethun, Rethinking work for a just and sustainable future. O Chat GPT também foi utilizado na revisão da redação e organização do artigo.
Tags: mercado de trabalho, PEC, Sustentabilidade, trabalho