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“O que é real? Como conhecê-lo?” – (Berger e Luckmann, 1995, p. 13)².
Por Junior Garcia
Vivemos em um mundo moldado por abstrações que infelizmente tomamos como verdades absolutas. Com frequência ouvimos, “sempre foi assim”. Na verdade, nem sempre foi assim. E na Economia (campo do conhecimento), temos muitas abstrações tratadas como verdades absolutas, ou seja, “sempre foi assim”. Dentre essas verdades absolutas, vale destacar a Economia (como subsistema socioeconômico), a moeda e o crescimento econômico (leia-se crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).
Essas verdades absolutas não passam de fantasias compartilhadas, mas que (in)felizmente orientam decisões globais, nacionais, regionais, locais e, inclusive, individuais, ou seja, determinam direta e indiretamente as nossas vidas. Essa perspectiva, explorada por Peter L. Berger, Thomas Luckmann e John R. Searle a partir de suas obras com o mesmo título, A construção da realidade social², lança luz sobre como criamos e sustentamos realidades subjetivas coletivas, ou seja, as nossas fantasias compartilhadas. Contudo, até que ponto essas fantasias compartilhadas estão contribuindo para o agravamento da crise socioecológica?
A crise socioecológica em curso expõe a fragilidade dessas fantasias compartilhadas, em muitos casos, consideradas como verdades absolutas e, portanto, supostamente imutáveis e inquestionáveis. A Economia, em sua forma predominante, é uma estrutura simbólica que auxilia na organização da produção e da distribuição de bens e serviços essenciais para a sobrevivência humana (as condições para a vida). O problema reside na desconexão entre essa estrutura, a base real e, portanto, sua base biofísica e social, além de seus limites biofísicos e socioeconômicos.
A Economia Ecológica aponta que os sistemas econômicos são subsistemas socioeconômicos abertos ao fluxo de matéria e energia do subsistema natural. Isso significa que a Economia depende do fluxo de matéria e energia e, portanto, deve respeitar a capacidade de regeneração dos ecossistemas. Não existe a possibilidade de produção imaterial. No entanto, a Economia Convencional permanece presa a um imaginário de crescimento infinito e da produção imaterial (desacoplamento). É aqui que a fantasia compartilhada se transforma em um perigo tangível: o crescimento econômico (leia-se do PIB) desmedido não é apenas insustentável; mas é incompatível com a sobrevivência da própria humanidade.
Nesse sentido, o PIB simboliza uma das fantasias compartilhadas mais arraigadas no imaginário moderno. Desde sua concepção, o PIB tem sido tratado como um termômetro do progresso e uma manifestação inquestionável e absoluta do desenvolvimento. No entanto, essa métrica é cega às externalidades, ignorando os danos ambientais, as perdas culturais e a desigualdade social. Mais crescimento do PIB frequentemente significa mais desmatamento, mais emissões de carbono e mais exploração humana. Tudo na sociedade tem sido feito para maximizar o crescimento do PIB, veja a proposta de redução de gastos do governo federal. E ainda assim, nos apegamos à ilusão de que seu aumento trará naturalmente uma prosperidade universal. Abandonar essa métrica como principal objetivo socioeconômico requer coragem para reconhecer que o verdadeiro progresso está muito além do PIB.
Por fim, a moeda talvez seja a fantasia compartilhada mais potente de todas. Trata-se de um símbolo cujo valor depende exclusivamente de nossa crença coletiva em sua legitimidade. A partir dessa convenção, desenvolvemos sistemas financeiros que operam em desconexão total das realidades sociais e materiais e, portanto, com a sua base biofísica. Vivemos presos ao mito da falta de dinheiro, como se a fonte de todos os problemas fosse a falta de dinheiro. O debate ambiental recente está concentrado na busca por fontes de financiamento para o enfrentamento da crise ecológica, sendo utilizado como desculpa para os fracassos na adoção dos compromissos assumidos, como se realmente o problema fosse o financiamento – falta de dinheiro.
O acúmulo de capital financeiro tem ignorado os custos socioecológicos e econômicos, reforçando desigualdades e acelerando o esgotamento de recursos naturais e, portanto, a degradação ambiental e as bases para a sustentação das condições para a vida. É possível repensar a moeda como um instrumento de justiça socioecológica, vinculado não apenas ao valor de mercado e à disposição a pagar, mas ao valor intrínseco das condições para a vida?
Sim, é possível repensar a moeda como um instrumento de justiça socioecológica, mas precisamos de novas fantasias compartilhadas. Para isso, precisamos desvinculá-la exclusivamente do valor de mercado, da disposição a pagar e conectá-la aos limites biofísicos e sociais e à justiça socioecológica. Uma moeda orientada por essa lógica poderia priorizar as condições para a vida, a regeneração ambiental, incentivar práticas sustentáveis e o combate às desigualdades. Já existem iniciativas que buscam construir novas fantasias compartilhadas, como as moedas socioambientais, que valorizam aspectos como a preservação ambiental, trabalho comunitário e sistemas sociais baseados no uso coletivo dos bens e serviços e na solidariedade. Ao redefinir o que consideramos “valor”, podemos transformar a moeda em uma ferramenta que promova as condições para a vida e a resiliência socioecológica.
Essas reflexões desafiam a percepção convencional de que estamos presos a essas verdades absolutas, portanto, a questões inquestionáveis e imutáveis. A Economia Ecológica pode nos ajudar a imaginar novas fantasias compartilhadas, baseadas em princípios de suficiência, equidade, justiça socioecológica e o respeito aos limites biofísicos do planeta e sociais. Não se trata apenas de uma utopia teórica, mas de uma necessidade prática e urgente em face ao aprofundamento da crise socioecológica.
Se as fantasias compartilhadas moldam o mundo, cabe a nós construirmos narrativas mais alinhadas com as condições reais de existência, as condições para a vida e sua universalização. Afinal, enquanto persistirmos na crença de que Economia, Moeda e PIB são inquestionáveis e imutáveis – verdades absolutas e que sempre foram assim, estaremos perpetuando uma ilusão que ameaça nossa própria sobrevivência como sociedade. O futuro exige uma nova imaginação coletiva, novas fantasias compartilhadas e uma ruptura urgente com o imaginário que nos trouxe até aqui, mas que também criou a crise socioecológica e a profunda desigualdade que agora ameaça as condições para a vida.
Junior Garcia – Professor do Departamento de Economia e Coordenador do Grupo de Estudos em MacroEconomia Ecológica (GEMAECO) da Universidade Federal do Paraná.
Notas
¹ O Chat GPT foi utilizado na revisão da redação e organização do artigo.
² Peter L. Berger e Thomas Luckmann, A construção da realidade social, publicada em 1966. John R. Searle, A construção da realidade social, publicada em 1995.
Tags: além PIB, crescimento econômico, Economia, economia imaginária, instituições, moeda